sexta-feira, 19 de abril de 2024

O Caminho da Beleza 22 - IV Domingo da Páscoa

A Palavra se fez carne e armou sua tenda entre nós (Jo 1, 14).

IV Domingo da Páscoa                        

At 4, 8-12                1 Jo 3, 1-2                Jo 10, 11-18

 

ESCUTAR

“Jesus é a pedra que vós, os construtores, desprezastes e que se tornou a pedra angular” (At 4, 11).

“Amados, vede que grande presente de amor o Pai nos deu: de sermos chamados filhos de Deus! E nós o somos!” (1 Jo 3, 1-2).

“Eu dou a minha vida pelas ovelhas” (Jo 10, 15).

 

MEDITAR

Eu sou o Amor sem limites. Não conheço nenhum limite no tempo. Não conheço nenhum limite no espaço. Não há nenhum lugar em que eu não me encontre. Não há nenhum momento em que eu não exprima o que sou, quem eu sou. Eu sou a origem e a raiz mais profunda, e o impulso do que vós sois. Eu sou a vossa verdadeira vida.

 

(Um monge da igreja oriental)

 

 

ORAR

Muitas vezes, nós pastores, obedecemos a lógica do mercenário quando cedemos ao prestígio pessoal, ao êxito, à popularidade; quando camuflamos, pelo paternalismo, o desejo de centralizar o poder; quando, ao invés de servir nos servimos das pessoas e nos relacionamos com elas sob a ótica da utilidade. Não criamos uma comunidade, mas uma corte de bajuladores que repartem entre si os cargos de maior visibilidade na igreja. Jesus se apresenta como o Bom Pastor, mas também como o Cordeiro (Jo 1, 29) e o cordeiro sempre nos invoca a imagem de debilidade mais do que a de força; de vítima mais do que a de guerreiro e conquistador; de modéstia mais do que a de arrogância. O evangelista João reafirma que o Cordeiro de Deus não se afastou, nem discriminou os pecadores e doentes, mas se tornou plenamente solidário com todos, sem exceção. Entre nós existe apenas uma raça que não está comprometida pela ameaça da extinção: a dos lobos e mercenários sem escrúpulos, que transitam livremente entre os rebanhos que estão muitas vezes à mercê deles como “ovelhas sem pastor”. Apascentar significa vigiar, nutrir, ensinar e sustentar. O bom pastor não apascenta a si mesmo, caso contrário será um “amor” ladrão que toma posse do que pertence a Deus e trai a confiança nele depositada; será ainda um “amor” feroz que usa da voracidade, da violência e da chantagem afetiva para submeter o outro e negar-lhe o direito à liberdade de amar. A comunidade criada pelo Cristo só a Ele pertence e não está encerrada em nenhuma instituição e nem restrita a uma cultura específica. O Cristo distribui os dons plurais e diversos para que nasçam comunidades fraternas e amorosas espalhadas por estas veredas de Deus e que um dia serão um único rebanho de um só pastor. Temos manipulado nossos jovens e nos servido deles para preencher os ginásios, as praças e os campos de futebol a fim de ostentar, com o poder dos números, a presença massiva em nossas igrejas. No entanto, Pedro alerta: quando aparecer o pastor supremo (1 Pd 5, 4), Ele não nos pedirá contas dos resultados faraônicos obtidos na colheita e no pastoreio, mas nos questionará sobre a paciência amorosa com a qual nos revestimos para semear e pastorear. O terreno do Juízo Final não será o ruidoso espaço das praças e ginásios, mas o pedaço minúsculo do nosso coração. A Igreja de Jesus não está construída sobre preciosos mármores ou cenários monumentais. A Igreja de Jesus está alicerçada sobre “uma pedra desprezada pelos construtores”. Somos herdeiros de Pedro, o pescador, e não de Constantino, o imperador. A comunidade cristã se nutre da disponibilidade de amar e de dar a vida uns pelos outros ainda que seja por meio de orações e intercessões. Somos parte deste Corpo Místico do Cristo em que o menor gesto ecoa e faz vibrar a totalidade deste mesmo Corpo. Se as ovelhas não valem a nossa vida, erramos de redil e nos perdemos, clamorosamente, nas estatísticas burocráticas de uma instituição eclesiástica. O mistério pascal se expressa no ato de entregar a vida e no aceitar, se preciso for, a morte. Jesus neste evangelho lança um desafio crucial: realizamos o nosso serviço aos irmãos como funcionários/mercenários ou como pessoas comprometidas com as comunidades que nos foram dadas por Deus? Se vingarmos a nossa presença como mercenários e não como samaritanos, viveremos na angústia de uma consciência infeliz que engana e, então, todos sairão perdendo: o pastor, as ovelhas, mas, sobretudo, a Igreja de Jesus.

(Manos da Terna Solidão/Pe. Paulo Botas, mts e Pe. Eduardo Spiller, mts).

 

CONTEMPLAR

O Bom Pastor, Daniel Bonnell, óleo sobre tela, 24” x 48”, Carolina do Sul, Estados-Unidos.

 


quinta-feira, 11 de abril de 2024

O Caminho da Beleza 21 - III Domingo da Páscoa

A Palavra se fez carne e armou sua tenda entre nós (Jo 1, 14).

III Domingo da Páscoa                        

At 3, 13-15.17-19               1 Jo 2, 1-5                Lc 24, 35-48

 

 

ESCUTAR

 

“Vós rejeitastes o santo e o justo e pedistes a libertação para um assassino. Vós matastes o autor da vida, mas Deus o ressuscitou dos mortos, e disso nós somos testemunhas” (At 3, 14-15).

 

Meus amados, escrevo isto para que não pequeis. No entanto, se alguém pecar, temos junto do Pai um defensor: Jesus Cristo, o justo (1 Jo 2, 1).

 

Jesus disse: “Tendes aqui alguma coisa para comer?”. Deram-lhe um pedaço de peixe assado. Ele o tomou e comeu diante deles (Lc 24, 41-42).

 

 

MEDITAR

 

Jesus nos ensinou ou, ao menos, quis nos ensinar a situar Deus num universo interpessoal, isto é, um universo onde não só o conhecemos como o amamos. Este universo é o universo de nossa humanidade, é o universo de nossas ternuras e de nossos amores, o único universo respirável, o único no qual nós podemos nos situar, se nós não quisermos renunciar à nossa dignidade (Maurice Zundel).

 


ORAR

 

     Existe uma história escrita pelo Altíssimo que inverte nossas opções equivocadas. Para Ele, sempre existirá um mas que vira do avesso os fatos: “Vós matastes o autor da vida, mas Deus o ressuscitou dos mortos”. Somos convidados a escrever uma história distinta de uma vez por todas e a não mais atrapalhar e impedir a nova trama da vida. Esta novidade é possível graças ao Ressuscitado que não aceita o medo dos seus amigos: “Eles ficaram assustados e cheios de medo, pensando que estavam vendo um fantasma”. Devemos sempre nos questionar quais os fantasmas que criamos para deformar as exigências do Evangelho e nos evadir dos passos do Cristo. Os fantasmas do poder, do dinheiro, do isolamento e de uma vida que basta a si mesmo: o que é meu é meu e o que é teu é meu também. O Ressuscitado representa a derrota do medo para que possamos chegar à plenitude do amor (1 Jo 4, 18). Quem teme nunca alcançará o amor perfeito. O amor desaloja do nosso interior o medo do castigo que tanta angústia nos causa. Este amor louco de Deus está sempre presente na comunidade cristã e na vida de cada um de nós. A todo e qualquer momento, podemos contar com este amor fiel e dele arrancar força e esperança. Crer significa aprender a ler os acontecimentos da vida como expressão dos passos de Deus, o passageiro misterioso que nos acompanha na travessia, que nos aponta o futuro que jamais será uma cópia ou uma repetição do passado. O Ressuscitado pode ser encontrado desde que queiramos, não desviemos o olhar e sejamos capazes de gestos concretos de compaixão: “Quem vos der de beber um copo d’água em meu nome não perderá a sua recompensa” (Mc 9, 41). Na Páscoa cristã, o Ressuscitado, nosso advogado junto ao Pai, e o pecador convertido se cruzam e constituem a comunidade pascal. Uma pequena condição é necessária: que à liberdade da oferta divina corresponda a liberdade da aceitação humana. Meditemos o nosso sim cotidiano ao Ressuscitado nas palavras do teólogo Henri de Lubac: “Todo problema da vida espiritual consiste no liberar o desejo da vida e transformá-lo em conversão radical, em metanóia, sem a qual não se entra absolutamente no Reino”. Deixemo-nos conduzir pelo Espírito que habita em nós como uma comunhão de mistérios, um encantamento de ternuras, que faz os que se amam olharem, não mais um para o outro, mas todos na mesma direção.

(Manos da Terna Solidão/Pe. Paulo Botas e Pe. Eduardo Spiller, mts).

 

CONTEMPLAR

 

On the Edge, 2022, Jean Patrick Gras, Praia da Ferrugem, Santa Catarina, Brasil, direitos adquiridos de imagem do site surfmappers.




sexta-feira, 5 de abril de 2024

O Caminho da Beleza 20 - II Domingo da Páscoa

A Palavra se fez carne e armou sua tenda entre nós (Jo 1, 14).

II Domingo da Páscoa

At 4, 32-35         1 Jo 5, 1-6         Jo 20, 19-31


ESCUTAR

“Ninguém considerava como próprias as coisas que possuía, mas tudo entre eles era posto em comum” (At 4, 32).

“Este é o que veio pela água e pelo sangue: Jesus Cristo. (Não veio somente com a água, mas com a água e o sangue)" (1 Jo 5, 6).

“Bem-aventurados os que creram sem terem visto!” (Jo 20, 29).


MEDITAR

Jesus concebia a fé como disposição do coração, confiança, atitude abrangente da existência. A fé de Jesus é a orientação de quem uniu a liberdade ao único necessário, desligando-a dos múltiplos ídolos do poder. É a fé como paz do coração, e também como luta contra a injustiça.

(Vito Mancuso)

Quanto a mim, confesso que acho natural entregar-me por inteiro ao afeto de meus amigos, especialmente quando estou cansado dos escândalos do mundo. Neles me repouso sem preocupação alguma. Pois sinto que Deus está lá, que é n'Ele que me lanço com toda a segurança e em toda segurança me repouso... Quando sinto que um homem, abrasado de amor cristão, tornou-se meu amigo fiel, o que lhe confio de meus projetos e de meus pensamentos não é a um homem que confio, mas Àquele em quem ele permanece e pelo qual é o que é.

(Santo Agostinho)


ORAR

    A primeira comunidade cristã entrelaça as suas raízes num terreno de comum humanidade com todos os outros: eram "um só coração e uma só alma”. No entanto, era distinta, pois colocavam tudo em comum e repartiam de acordo com a necessidade de cada um. O cristianismo nos ensina que irmão não é somente quem partilha a mesma fé, mas o que, gratuitamente, participa dos nossos bens. Na primeira comunidade não existia discriminação econômica e a prática da partilha e da solidariedade substituía uma lógica patronal e privatizada. Mas existiram sombras nesta comunidade. Ananias e Safira venderam sua propriedade, guardaram para si parte do dinheiro e o resto depuseram aos pés dos apóstolos. Foram réus porque mentiram ao Espírito Santo e caíram mortos aos pés de Pedro: “Não mentiste aos homens, mas a Deus” (At 5, 4). O evangelista apresenta uma comunidade em crise de medo. Tomé é o gêmeo de Jesus porque é o único discípulo disposto a dar a sua vida por Ele. A diferença entre Tomé e Pedro é que o gêmeo compreendeu que Jesus não pede que se morra por Ele, mas com Ele. Não somos chamados, como heróis, a dar a vida por Jesus, mas dar a vida pelos outros como foi o seu testemunho de amor. A leitura equivocada dos evangelhos converteu Tomé em um incrédulo. Jesus não lhe aponta um dedo ameaçador, porque um dedo ameaçador não salva ninguém e nem é um argumento convincente. A grande dificuldade de acreditar não vem da invisibilidade do Ressuscitado, mas da visibilidade dos cristãos que se mostram pouco acolhedores e misericordiosos. Tomé não nega a ressurreição de Jesus, mas revela uma atitude quase desesperada de crer nela e faz a mais elevada profissão de fé: “Meu Senhor e meu Deus!”.  Apesar disto tudo, Jesus não o propõe como modelo de fé. Para Jesus, o verdadeiro fundamento da fé não são as visões e aparições nem as experiências extraordinárias, mas o simples serviço prestado por amor. A comunidade cristã deve ser fiel ao anúncio e ao testemunho do Evangelho; fiel ao amor fraterno expresso no serviço aos mais necessitados e fiel à partilha eucarística, seu coração e élan vitais. Meditemos um provérbio indiano: “Quando batemos palmas conhecemos o som de duas mãos juntas. Mas qual é o som de uma única mão?”.

(Manos da Terna Solidão/Pe. Paulo Botas, mts e Pe. Eduardo Spiller, mts)


CONTEMPLAR

A incredulidade de São Tomé, 1620, Matthias Stomer (1600-1650), Países Baixos, óleo sobre tela, 125 cm x 99 cm, Museu do Prado, Espanha.




sexta-feira, 29 de março de 2024

O Caminho da Beleza 19 - Páscoa da Ressurreição

 A Palavra se fez carne e armou sua tenda entre nós (Jo 1, 14).

Domingo de Páscoa                  

At 10, 34.37-43                 Cl 3, 1-4                   Jo 20, 1-9

 

ESCUTAR

“Ele andou por toda parte, fazendo o bem e curando a todos os que estavam dominados pelo demônio, porque Deus estava com ele” (At 10, 38).

Vós morrestes e a vossa vida está escondida, com Cristo, em Deus (Cl 3, 3).

Entrou também o outro discípulo, que tinha chegado primeiro ao túmulo. Ele viu e acreditou.

 

MEDITAR

A grande tragédia da vida não é que o homem pereça, mas que ele cesse de amar.

(Somerset Maugham)

 

ORAR

      Neste domingo da Ressurreição, é proclamado que só quem ama é capaz de acreditar e ter esperança. O primeiro dia se inicia num cenário nupcial: “Procurei o amado da minha alma. Procurei-o pelas ruas e pelas praças... procurei-o e não o encontrei” (Ct 3, 1). O papa Bento XVI escreve: “Agora o amor torna-se cuidado do outro pelo outro. Já não se busca a si próprio, não busca a imersão no inebriamento da felicidade; procura, em vez disso, o bem-amado: torna-se renúncia, está disposto ao sacrifício, antes, procura-o” (Deus caritas est). Pedro, ao ver “as faixas de linho deitadas no chão”, compreende que o próprio Jesus deixara o sinal de que estava vivo: dobrara o pano que cobria a sua cabeça e não o seu rosto, como era costume fazer com os mortos. A totalidade da humanidade de Jesus incluiu também a sua morte. Jesus morreu, mas não é um cadáver. Madalena, Pedro e João sabem que será inútil buscá-Lo no sepulcro. Ele não está mais ali. A nossa vida, como a Dele, quando entregue por amor aos outros, supera e vence a morte. A ressurreição de Jesus não deve ser compreendida como uma volta à vida biológica que enraizaria a existência humana numa dependência do mundo físico. Devemos ir, com a fé e a esperança no mais íntimo de nós, além da visibilidade dos corpos inertes, dos corpos devorados pela esclerose e dos olhares perdidos em espaços vazios. Jesus é Presença como Dom absoluto e a sua ressurreição nos garante que podemos atingir o segredo interior, o espaço ilimitado e a presença que faz da própria existência um dom. Somos chamados a sermos eternos e não imortais. Deus promete aos que amam a ressurreição da carne e a vida eterna e não a imortalidade da alma. O Espírito nos transforma, cotidianamente, em fonte e dom. Cada menor gesto de solidariedade, cada abandono da estabilidade pessoal, cada passo em direção aos que sofrem é uma ressurreição vingada, pois “se em minha vida negligencio completamente a atenção ao outro, importando-me apenas com ser ‘piedoso’ e cumprir meus ‘deveres religiosos’, então definha também a relação com Deus. Nesse caso, trata-se de uma relação ‘correta’, mas sem amor” (Bento XVI, Deus caritas est). Somente como fonte e dom, poderemos viver no Espírito do Ressuscitado e nos tornarmos o círio pascal que ilumina a todos com o esplendor da vida. Poderemos ser os artesãos que carregam em seus gestos e tramas do viver cotidiano a Luz do triunfo do Cristo sobre a morte e proclamar que não somos herdeiros de um túmulo vazio e que “Deus não é um Deus dos mortos, mas um Deus dos vivos” (Mt 22, 32). Neste domingo de Páscoa devemos responder, no mais íntimo de nós, a pergunta de Jesus à Marta: “Crês nisto?...Se creres verás a glória de Deus” (Jo 11, 40) e, então, deixarmos nosso espírito balbuciar em gemidos de amor: “Eu sou para o meu amado e meu amado é para mim, ele que apascenta entre os lírios” (Ct 6, 3).

(Manos da Terna Solidão/ Pe. Paulo Botas, mts e Pe. Eduardo Spiller, mts)


CONTEMPLAR

“Que o Cristo está morto..., que ele foi enterrado, e que ele ressuscitou ao terceiro dia (1ª epístola aos Coríntios, 15)”, 1964, Salvador Dalí (1904-1989), aquarela, Coleção Biblia Sacra, Chant V/99, Editora Rizzoli, Milão, Itália.




quinta-feira, 21 de março de 2024

O Caminho da Beleza 18 - Ramos da Paixão do Senhor

A Palavra se fez carne e armou sua tenda entre nós (Jo 1, 14).

Ramos da Paixão do Senhor             

Is 50, 4-7                 Fl 2, 6-11                 Mc 15, 1-39

 

ESCUTAR

“O Senhor Deus deu-me língua adestrada para que eu saiba dizer palavras de conforto à pessoa abatida” (Is 50 4).

“Encontrado com aspecto humano, humilhou-se a si mesmo, fazendo-se obediente até a morte, e morte de cruz” (Fl 2, 7-8).

“Nesse momento a cortina do santuário rasgou-se de alto a baixo, em duas partes. Quando o oficial do exército, que estava bem em frente dele, viu como Jesus havia expirado, disse: Na verdade, este homem era Filho de Deus!” (Mc 15, 38-39).

 

MEDITAR

Jesus de Nazaré não morreu como um estoico, com uma serenidade desprovida de paixões, o mais possível sem dor. Muito pelo contrário, experimentou grandes tormentos, expressos no grito final. O cristão não tem que esconder o seu medo e pode estar certo – ouvindo ainda o grito de Jesus – de que o seu medo será abraçado por um Deus, pelo Deus do amor.

(Hans Kung)

Quando o amor vos chamar, segui-o, embora seus caminhos sejam agrestes e escarpados; e quando ele vos envolver com suas asas, cedei-lhe, embora a espada oculta na sua plumagem possa ferir-vos; e quando ele vos falar, acreditai nele, embora sua voz possa despedaçar vossos sonhos como o vento devasta o jardim. Pois, da mesma forma que o amor vos coroa, assim ele vos crucifica. E da mesma forma que contribui para vosso crescimento, trabalha para vossa poda.

(Kalil Gibran)


ORAR

    Temos o costume de nomear este domingo como uma entrada triunfal de Jesus em Jerusalém e, para tanto, acrescentamos todos os ingredientes que a nossa imaginação possa inventar: mobilização das massas, entusiasmo incontido, adornos faustosos, cantos, gritos e aplausos vibrantes. Aprendemos que a grandeza de Deus só pode ser celebrada com mantos reais, coreografias espetaculosas e cortejos imponentes. No entanto, para Jesus, o triunfo é o da humildade, da modéstia, da mansidão, pois todas as suas conquistas foram obtidas com a força do amor. Jesus, até hoje, não se interessa pelos aplausos e gritarias que beiram a histeria, mas sim pelos corações convictos dos seus seguidores. Neste domingo, o Cristo quer ser reconhecido como um rei na sua debilidade desarmada, na sua aceitação da perseguição e no fato de ter resistido à violência, aos insultos e às torturas brutais. O nome de Jesus que invocamos é um nome que foi desacreditado pelos detentores do poder civil e religioso. Neste domingo, não podemos ficar perplexos e desconcertados diante da realidade da Cruz e embaraçados com uma fé sem profecia que nos impede de conquistar a esperança que faz atingir o mais além de nós mesmos. Somente o olhar da fé permite superar o muro do escândalo e acreditar que podemos ver de outra maneira os acontecimentos da nossa vida. E devemos estar lúcidos de que a única resposta ao excesso do mal e da violência é a superabundância de amor que nos conduz, se preciso, até o dom da própria vida.  Jesus não tinha dinheiro. Não tinha autoridade religiosa oficial, por não ser nem sacerdote e nem escriba. Jesus levava apenas em seu coração o fogo do amor pelos que eram injustiçados e até mortos pela violência dos poderosos. A mensagem de Jesus era direta e sem rodeios: os que desprezamos, excluímos e exploramos são os prediletos de Deus. Celebrar a Semana Santa é uma conversão constante para que os nossos corações sejam capazes de olhar e atender aos que sofrem, identificando-nos, cada vez mais, com eles. Nestes tempos, amordaçamos os gritos de indignação e nos acomodamos a tudo o que é tranquilizador, que não exija nada da inteligência e que seja um refúgio que nos proteja do vazio existencial. Queremos e construímos um tipo de religião que não intranquiliza ninguém, que não tem nenhuma agonia, que perdeu a tensão do seguimento de Jesus, pois não nos chama à responsabilidade alguma, pelo contrário, exonera-nos dela. No nosso cristianismo atual, escutamos cantos que abafam o grito dos pobres; estamos mergulhados em muita alegria e júbilo que não nos sobra tempo para os que sofrem; conclamamos nossos filhos e filhas a “botar fé” para a sua fartura emocional e não os evangelizamos para que tenham fome e sede de justiça para com todos seus irmãos e irmãs, filhos e filhas do mesmo Pai. Neste domingo de ramos, celebramos o Messias da Cruz, desprezado, traído e abandonado. Neste domingo, devemos estar atentos ao sinal de Deus para que sejamos humildes e compassivos, pois é o outro – o estrangeiro, o diferente de nós, o pagão – que faz a sua profissão de fé, não no momento arrebatador do triunfo, mas no escândalo da derrota: “Na verdade, este homem era Filho de Deus!”. Por esta razão, devemos sempre testemunhar a esperança de que todos os humilhados da terra um dia se levantarão do seu túmulo para obter a reparação e a recompensa da violência sofrida em suas vidas: a bem-aventurança no Reino e a vida eterna. Amém!

(Manos da Terna Solidão/Pe. Paulo Botas, mts e Pe. Eduardo Spiller, mts)


CONTEMPLAR

A Entrada de Cristo em Jerusalém, c. 1842, Jean-Hippolyte Flandrin (1809-1864), afresco, Igreja de Saint-Germain-des-Prés, Paris, França.   



 

terça-feira, 12 de março de 2024

O Caminho da Beleza 17 - V Domingo da Quaresma

A Palavra se fez carne e armou sua tenda entre nós (Jo 1, 14).

V Domingo da Quaresma                   

Jr 31, 31-34            Hb 5, 7-9                 Jo 12, 20-33

 

ESCUTAR

“Imprimirei minha lei em suas entranhas e hei de inscrevê-la em seu coração; serei seu Deus e eles serão meu povo” (Jr 31, 33).

Mesmo sendo Filho, aprendeu o que significa a obediência a Deus por aquilo que sofreu (Hb 5, 8).

“Se o grão de trigo que cai na terra não morre, ele continua só um grão de trigo; mas, se morre, então produz muito fruto” (Jo 12, 24).

 

MEDITAR

De Deus é a honra. Quem são os que honram a Deus? São os que deixaram totalmente a si mesmos e, de modo algum, nada buscam do que é seu em nenhuma coisa, seja o que for, grande ou pequena; não veem nada abaixo nem acima de si, nem ao seu lado nem em si mesmos... Dessas pessoas Deus recebe honra. E elas honram a Deus, no sentido próprio, dando a Deus o que é de Deus.

(Mestre Eckhart)

 

ORAR

      Jesus revela que a sua hora não é a do êxito, da popularidade, mas a hora do grão de trigo que deve desaparecer e morrer debaixo da terra. Ele é apenas um grão de trigo e é nesta humildade que se mostra a sua grandeza: perde para ganhar! É a hora de uma dolorida semeadura, pois a fecundidade passa pela morte e a manifestação da luz pela sepultura. Jesus enfrenta a sua hora não como um herói, mas como um homem entre outros, um homem que tem medo de morrer. Jesus está inquieto, sua alma está triste porque sente uma repugnância diante da morte. Na Cruz, Jesus não reivindica outra glória do que a glória do amor. Os cristãos e os de boa vontade devem recusar as fáceis popularidades, devem perder as suas vidas e não se evadir nas ambições e vaidades. Obedecer a Deus não é se submeter, mas ser dócil ao amor, a única lei inscrita pelo próprio Senhor em nossos corações. O cristão deve estar pronto para a cada nova hora escolher entre o privilégio da fama e a posição incômoda da Cruz.  Um dia ou outro, teremos que viver esta hora do amor que vai além do limite de nós mesmos. Todo cristão tem que escolher entre uma vida estéril ou fecunda e ela nunca será sem dores! Somos convidados a vivenciar este mistério de fecundidade em que o semeador se converte em semente: morre, fecunda a terra e ressurge com toda a força da Vida. O Deus de Jesus Cristo quer pessoas que escutem a sua voz no mais fundo dos seus corações e, consequentemente, sejam capazes de amar como Ele pretende que seja o amor: um poder de serviço cada vez mais exigente na entrega, por ser cada vez mais pleno e transbordante. E não devemos jamais esquecer que “todo mundo tem sua vez e sua hora” (Guimarães Rosa).

(Manos da Terna Solidão/Pe. Paulo Botas, mts e Pe. Eduardo Spiller, mts)

 

CONTEMPLAR

Via Sacra, Cruz (detalhe), Arcabas (Jean Marie Pirot), Igreja do Espírito Santo e de S. Alessandro Mártir, Arquidiocese de Portoviejo, Equador.




quinta-feira, 7 de março de 2024

O Caminho da Beleza 16 - IV Domingo da Quaresma

A Palavra se fez carne e armou sua tenda entre nós (Jo 1, 14).

IV Domingo da Quaresma     

2 Cr 36, 14-16.19-23                   Ef 2, 4-10                 Jo 3, 14-21

 

ESCUTAR

Zombavam dos enviados de Deus, desprezavam as suas palavras, até que o furor do Senhor se levantou contra o seu povo e não houve mais remédio (2 Cr 36, 16).

Deus é rico em misericórdia. Por causa do grande amor com que nos amou, quando estávamos mortos por causa das nossas faltas, ele nos deu a vida com Cristo. É por graça que vós sois salvos! (Ef 2, 4-5).

“Deus não enviou o seu Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele” (Jo 3, 17).

 

MEDITAR

Em Deus, não há um Eu único, há três abrigos de luz, três abrigos de amor, três abrigos de comunicação onde toda a Vida divina, constantemente, se renova num dom inesgotável.

(Maurice Zundel)

A misericórdia de Deus em Cristo é mais do que a absolvição legal do pecado. O cristão é chamado a se tornar um homem novo e a participar de uma nova criação que é precisamente obra da misericórdia e não do poder.

(Thomas Merton)

 

ORAR

      O ponto alto da nossa fé está no versículo dezesseis deste evangelho joanino: “Deus amou tanto o mundo, que deu o seu Filho Único!”. Tantas vezes quando falamos de crer nos vêm à mente uma lista de dogmas aos quais devemos aderir, mas o cristão de fato acredita, sobretudo, no fato de que o amor de Deus foi manifestado no dom do Filho. Quem acredita tem fé, principalmente, no amor: Deus ama o mundo, ama todos os homens e mulheres e ama cada um de nós. E este amor divino manifestado por Cristo é testemunhado por Ele na Cruz. A cruz de Jesus fala de um amor derrotado e, ao mesmo tempo, vitorioso; de um amor humilhado, mas circundado de glória; de um amor traído, mas fiel. Não podemos esquecer que foi um justo a quem crucificaram. A exaltação do Cristo se dá num solo infame e, apesar disto, é a manifestação de um único poder, o do amor. Este dom carrega sempre em seu bojo uma crise: pode ser aceito ou rejeitado. O julgamento acontece no aqui e agora da terra e somos nós que nos julgamos e nos colocamos numa situação de salvação ou de condenação diante da decisão que assumimos frente ao amor manifestado por Jesus. Os homens odeiam a luz e preferem as trevas, mas Deus, na sua liberdade de amar, faz despontar a salvação de onde menos se espera. Sempre existe alguém que chega de longe e que reconstrói o que foi profanado pelos “infiéis” da própria casa. Sempre um pagão pode ser eleito por Deus para ser sinal e instrumento de seu amor que não falha. Os homens constroem por suas próprias mãos as ruínas, mas são incapazes de reconstruir o que destruíram. A salvação é um dom gratuito e exclusivo de Deus e cabe a nós distribuir ao menos alguma migalha de bondade tirada do tesouro inesgotável deste Deus “rico em misericórdia”. Devemos proclamar, como cristãos, que sobre o pecado e o mal do mundo resplandece sempre a luz da misericórdia de Deus. É da luz que nasce a nova humanidade que ama a luz e age conforme a verdade. Celebrar a Páscoa é celebrar a esperança na misericórdia divina: “Afastai de vós toda amargura, paixão, cólera, gritos, insultos e qualquer tipo de maldade. Sede amáveis e compassivos uns para com os outros. Perdoai-vos, como Deus vos perdoou em atenção a Cristo” (Ef 4, 31-32). Como Igreja devemos testemunhar que Jesus, o Cristo, não é apenas um Messias reformador das instituições religiosas, mas o doador da vida e da liberdade que acredita em todas as possibilidades humanas e é solidário com elas. Jesus espera que sejamos capazes de sujar de Vida todos os olhos claros de Morte.

(Manos da Terna Solidão/Pe. Paulo Botas, mts e Pe. Eduardo Spiller, mts)

 

CONTEMPLAR

A Trindade na ortodoxia, 1974, Micheau-Vernez (1907-1989), óleo sobre tela, 116 cm x 81 cm, Croisic, França.